Desde que a imprensa internacional denunciou o governo norte-americano pela
coleta indiscriminada de dados telefônicos e, especialmente, das atividades
pessoais em populares sites e serviços da internet, a linha tênue entre a
realidade e a ficção cientifica foi cruzada.
O cinema popularizou a história de um estado onipresente e totalitário com o
filme "1984", baseado no romance de George Orwell. Também chamou a atenção de
milhões de espectadores para a discussão da privacidade e da manipulação de
dados pessoais com a trama "Inimigo de Estado", de 1998.
Na mesma época em que a internet comercial se popularizava no país, na ficção
Will Smith era perseguido por ter provas contra um esquema que pretendia aprovar
uma lei autorizando a vigilância irrestrita das atividades digitais nos Estados
Unidos.
Na vida real, essa lei foi aprovada em 2001, nas entrelinhas do chamado ato
USA Patriot Act, com objetivo oficial de "unir e fortalecer a América,
fornecendo instrumentos apropriados requeridos para interceptar e obstruir o
terrorismo".
Para especialistas em internet e crimes digitais, a coleta de dados feita
pelo governo de Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, não tem nada de
ilegal.
"Ainda que possa chocar ou parecer invasivo, tudo isso que está sendo
discutido, noticiado e feito nos Estados Unidos está dentro do procedimento
legislativo normal e regular", garante o advogado Renato Ópice Blum, professor
de Direito Eletrônico na Universidade de São Paulo e na Fundação Getúlio Vargas,
além de vice-presidente da Comissão de Crimes Eletrônicos da OAB de São Paulo.
Para ele, o problema está no controle de informações de quem vive fora dos
Estados Unidos. Isso porque, gigantes da internet como Google, Facebook, Apple,
PalTalk, AOL, Skype e YouTube, citados como fontes dos dados, não atendem apenas
a usuários norte-americanos.
"O que acontece é que os serviços envolvidos são usados por pessoas do mundo
inteiro. E então encontramos diferentes leis em diferentes países e diferentes
comportamentos", enfatiza.
Para o advogado, a falta de regulamentações e leis internacionais claras
dificulta qualquer ação jurídica.
BRASILEIROS
Dados de brasileiros também podem ter sido coletados pelo governo
norte-americano por meio do programa secreto Prism.
"Certamente os brasileiros são monitorados", afirma Rafael Rez Oliveira,
especialista em internet há mais de 15 anos e diretor de uma empresa
especializada em consultoria e estratégia de marketing digital.
Ele acredita que 100% dos brasileiros que acessaram essas plataformas
monitoradas pelo governo norte-americano podem ter sido vítimas de espionagem.
Apesar de toda a discussão na imprensa internacional, Rafael duvida da
eficácia do monitoramento na prevenção de crimes. Ele explica que, por trás das
informações que os usuários geralmente acessam, existe outra camada de dados
muito maior.
"Cerca de 70% de toda a informação está na chamada internet profunda e não é
percebida pela maioria das pessoas", comenta.
O especialista afirma que as chances maiores de ocorrerem trocas de
informações relacionadas a atos de terrorismo ou atividades ilegais estão nesse
submundo digital, onde funcionariam redes de tráfico ou crimes sexuais.
Já o advogado Ópice Blum adiciona que existe ainda uma grande diferença entre
a coleta de dados e o uso dessas informações. "Existe essa possibilidade de
guardar toda essa infinidade de dados, mas há uma dificuldade técnica de
conseguir tratar, separar e achar as informações", compara.
PRIVACIDADE
Atualmente, mais 84 milhões de brasileiros têm acesso à internet e nem todo
mundo age com cautela na hora de divulgar seus dados na rede. Rafael Oliveira é
taxativo quando o assunto é a segurança de dados e, para ele, existe uma falsa
sensação de privacidade.
Para alguns cadastros, o usuário fornece o nome e o endereço eletrônico, mas
a programação que funciona por trás da interface visível coleta informações
muito mais detalhadas, como o histórico de navegação ou mesmo o endereço físico
real de onde está sendo feito o acesso.
Além disso, ele argumenta que a partir do momento em que o usuário
disponibiliza informações para um site, ele passa a ser a fonte e não mais o
dono das informações publicadas.
O especialista em marketing digital explica que essa transferência da
propriedade da informação é definida na aceitação dos termos de uso de um
serviço, documento que a grande maioria dos usuários aceita sem ter lido.
Claro que aceitar o termo de uso é, geralmente, um requisito para ter acesso
ao serviço.
"O Facebook não vai fazer um contrato específico para cada pessoa",
exemplifica. O que os dois especialistas sugerem é que ao saber com exatidão o
que será feito com a informação, o usuário pode optar ou não por usar o serviço
ou ainda policiar as informações que vai disponibilizar na rede.
Ópice Blum ressalta a importância de identificar os riscos. Particularmente,
ele usa quase todas as ferramentas mencionadas no esquema do vazamento de
informações, mas faz isso com cautela.
"Eu não tenho uma plena expectativa de privacidade. Sei que tudo o que estou
enviando ou recebendo, mais cedo ou mais tarde, vai parar em algum lugar e sair
do meu controle", pondera.
Apesar do cuidado sugerido pelos especialistas, Ópice Blum afirma que no
Brasil o controle é mais ameno e são necessárias autorizações judiciais para a
coleta e o monitoramento de atividades telefônicas e digitais.
No entanto, isso não reduz os riscos. Para o advogado, não existe garantia de
que dados on-line estejam protegidos. Na empresa jurídica que dirige, 15% a 20%
dos casos são relacionados ao vazamento de informações.
Ele conta que vazamentos de dados empresariais importantes são muito mais
comuns do que se imagina. E nesse caso, nem as próprias agências de segurança
estão isentas do risco.
PREOCUPAÇÃO INTERNACIONAL
A denúncia do esquema norte-americano é assunto sensível na comunidade
internacional e especialistas alegam que a União Europeia teria conhecimento do
esquema desde 2008. O ministro do Interior alemão, Hans-Peter Friedrich, afirmou
que sua única fonte de informação sobre a existência do Prism foi a imprensa.
Apesar disso, ele não descartou que autoridades alemãs da área de segurança
possam ter se beneficiado dos dados obtidos de forma controversa e, assim com os
norte-americanos, os serviços de inteligência da Alemanha não revelam a origem
de suas informações.
Apesar do debate, Oliveira acredita que nada deve mudar. Ele acredita que
pessoas mais politizadas talvez abandonem o uso das ferramentas envolvidas. "Mas
isso é fogo de palha. A poeira vai baixar e as coisas vão continuar como estão".
Fonte :folha de são Paulo.